Archive for dezembro 2013

Quero fugir, não tenho forças para ajudar (Conto)

AVISO: Esse é um conto evangélico. Contém cenas fortes. Não recomendado para menores de catorze anos. Não aceito preconceito, de nenhum tipo, por aqui.


Dedicado a meus líderes que inspiraram os personagens Dayo e Miranda, que eu amo muito, e tenho muito orgulho: Ademar e Adelise Meyer.

Era verão, e estava quente. Eu estava sentada ao lado do ar condicionado ligado, então provavelmente eu iria pegar um resfriado depois. Mas, bem, era uma data importante. Era o encontro nacional de jovens evangélicos, e o lugar estava tão lotado quanto não poderia estar. O evento estava acontecendo na minha igreja, pois tinha um dos templos maiores do país. 
Eu era coordenadora de mídia e comunicação da minha igreja. Por isso mesmo, tinha um notebook comigo, onde eu ao mesmo tempo, cuidava o datashow e noticiava o que acontecia no Facebook e no Twitter que tinha criado especialmente para o meu grupo de jovens. Era um dia feliz e cheio de expectativas para todos nós. Onde jovens se encontram é o lugar perfeito para se fazer amizades, e quem sabe, encontrar aquela pessoa especial.
Meu nome é Aretha. Eu sei, é um pouco diferente. Trata-se de um nome grego, já que minha família é ortodoxa. Eu e meus irmãos, escolhemos a religião evangélica, em um dia comum há dois anos atrás, quando Deus surgiu em nossas vidas e nos mostrou um mundo totalmente novo. Claro que respeito e muito a religião dos meus pais, inclusive amo meu nome, cujo significado é o que me diferencia dos meus irmãos e do resto do mundo. Sou A Melhor. Sou Aretha.
Meus irmãos, aliás, são os gêmeos dois anos mais novos que eu, Berenice e Benedito. Os dois nasceram numa época em que minha mãe tinha uma doença grave, e a gravidez, por milagre, ajudou a recuperação. Por isso mesmo, seus nomes significam Aquela que trás a vitória, e Bendito. Com seus dezesseis anos, Nice era a mais responsável da família, inclusive mais que eu. Dito era o extremo oposto. Nunca o vi muito envolvido com as coisas da igreja, e vivia a procurar encrenca por aí. Mas era um bom garoto, nunca prejudicou ninguém com sua hiperatividade. Que aliás, era uma características dos dois.
Claro que Berenice estava sentada ao meu lado, no seu melhor look - ela tinha um visual nerd chic que eu amava - e com a chapinha bem feita no cabelo cumprido. Dito estava em algum lugar do lado de fora, provavelmente tentando conquistar as pobres meninas inocentes, que era sua maior fama. 
Como o evento duraria o dia todo, haveria um intervalo para o almoço, que poderia ser realizado ali ou em casa. Meu líder de jovens, Dayo, estava falando sobre a honra de ter aqueles jovens ali, e se emocionara. Ele era uma benção de Deus em nossas vidas. Antes dele, o grupo de jovens era disperso, desanimado e quase nunca se envolviam no que não envolvesse diversão na teoria deles. Dayo foi aquele que não só tornou Deus maior que tudo em nossas vidas, como além de tudo isso, é divertido, amigo e conhece a todos nós pelo nome. E o amor que tem por nós é tão puro e tênue que me emociona só de pensar. Finalmente, ele despediu a parte da manhã.
- Ei, Aretha, enquanto termina tudo aí, vou dar uma volta para ver se conheço alguém, tá bom? - Berenice sorriu - Volto em meia hora no máximo, consegue desligar tudo até lá, né?
Fiz que sim com a cabeça, sem tirar os olhos da tela. Vi pela visão panorâmica quando ela saiu, atrás dos centenas de jovens. Continuei meu trabalho pela meia hora prometida e só então, desliguei o computador e o aparelho de datashow.
Saí para o pátio, observando tudo. A maioria estava no outro prédio, almoçando ou esperando na fila por isso. Os poucos jovens que sobraram estavam do lado de fora, conversando com Miranda, a linda e amável esposa de Dayo, grávida de sete meses e sempre com uma fé inabalável em todos nós. Tínhamos líderes de ouro, e eu sabia bem disso.
- Então, vamo lá? - convidei - O ônibus sai em alguns minutos. 
Berenice estremeceu ao meu lado, mas eu ignorei. Não avistei Dito em lugar algum.
- Cadê o Dito? - perguntei aos outros.
- Tá almoçando - falou a voz delicada e calma de Miranda, sorrindo - Deixa ele aí, Aretha, cuido dele - ela piscou.
Olhei pra ela com aquela expressão "Tem certeza que quer fazer isso? Ele é Benedito!". Ela fez que sim com a cabeça a minha pergunta imaginária. Confiança demais, como sempre.
Fiz com a cabeça um sinal para que Nice andasse. Ela me seguiu, um tanto quieta, o que me deixou meio desconcertada. Berenice e Benedito eram conhecidos por falarem o tempo inteiro, criarem assuntos do nada. Algo devia ter acontecido. Talvez ela tenha tentado conversar com alguém que a ignorou ou algo assim, não sei. Mas isso não seria motivo o suficiente para fazê-la calar, devia ter acontecido alguma coisa.
- Nice? - estávamos agora no corredor que levava ao estacionamento, onde  o ônibus esperava - Aconteceu alguma coisa?
Ela olhou de um lado a outro, nitidamente assustada e me abraçou forte, tremendo tanto que eu tive medo que despencasse.
- Nice, o que foi? - perguntei de novo, agora mais carinhosa.
- Eu perdi a virgindade com alguém hoje, Aretha - ela disse isso num sussurro rápido, abafado pelos soluços - Eu quero morrer. Eu devia morrer, devia ir pro inferno, eu mereceria.
- Ei, não viaja, Bê - só a chamava assim quando se tratava da minha irmãzinha, não mais da minha melhor amiga - Todo mundo merece morrer, todo mundo tem pecado, Deus não olha tamanho de pecado, tá bom? Agora conta essa história direito, ok?
Ela caiu em um choro dramático, com soluções e lágrimas em demasia. Meu ombro encharcou e eu tive vontade de chorar junto com ela, mas o que teria acontecido?
***
Finalmente, estávamos no ônibus. Meu irmão estava com a gente, apesar de já ter almoçado. Além de nós, mais seis jovens estavam dentro do veículo, um pouco mais atrás, de modo que não podiam ouvir o que falávamos.
- Agora que já está calma, pode me contar o que aconteceu? - pedi, implorando a Berenice, que agora estava sentada quieta, olhando a janela.
- Foi... Tudo rápido demais. Confuso demais - ela falou, finalmente.
- Quando? - perguntei, arrasada. Queria tanto ter o que falar, uma forma de ajudar, mas eu não via como.
- Na hora do almoço - ela mordeu o lábio, mas ainda não olhava pra mim - Quando saí de perto de você.
Enruguei a testa, meu peito doendo por dentro.
- Mas, Nice... - mordi o lábio também, com tanta força que senti gosto de sangue - Foi assim tão rápido? Como foi que isso aconteceu? E com quem?
Ela tinha os olhos baixos, como se tivesse de olhos fechados. Todo seu corpo tremia, suas pernas faziam um movimento como se estivessem dançando.
- Ele provocou - ela choramingou - Estávamos conversando, ele subiu em mim, eu não disse sim, mas também não disse não. Ele me provocou.
O choro saiu da garganta dela, num corroído sentimento de angústia e culpa. Me segurei pra não cair no choro também.
- Ele fez de uma forma que praticamente nos obrigou - agora era a voz de Dito - Perdi as forças, não consegui lutar, ele praticamente abusou da gente.
Meus olhos cresceram automaticamente, e eu me ergui de súbito, o coração batendo descompassado.
- Você também? - perguntei, agora a raiva crescendo dentro de mim - E com um cara?
Eu estava gritando agora. Todos os outros jovens me olharam, Dito me xingou com um olhar. 
- Não foi nossa culpa, foi um abuso - ele repetiu, como pra fazer ele mesmo acreditar.
De repente, o ônibus acelerou muito, quase erguendo. Me segurei como pude, mas caí no chão. Todo meu corpo doeu, reclamando do tombo. Os outros se seguraram nos bancos, fui a única que estava de pé. Eu gritei. O ônibus virou na direção de um caminhão, arrastando o outro veículo com ele até a avenida, e bateu com força no prédio, junto com o caminhão. Pressenti a explosão, antes que pudesse fazer alguma coisa, Dito tinha aberto a saída de emergência e nos ajudava a sair do ônibus.
- É ele, Aretha - choramingou Berenice, como uma criança grande - Foi ele, deve ter ouvido, tá tentando matar a gente.
- Não seja ridícula, Bê, por que ele mataria você?
Vi uma sombra perto de mim. Virei a cabeça e vi, perto demais, Keiko, a oriental de vestido vermelho e cabelos pretos soltos ao vento. Ela tinha no rosto um sorriso diabólico, que fiz o que uma cristã faria.
- Tá repreendido, em nome de Jesus! - gritei, meu coração pulando no peito. Ela riu.
- Vocês estão mortos, seus imbécis. E nenhum Deus vai salvar vocês.
Corri, levando os gêmeos atrás de mim, o mais rápido que pude. A japa aparecia em volta como se estivesse se teletransportando muitas vezes. Finalmente chegamos em casa. A frente estava coberta de ferramentas. Estranho. Entramos o mais rápido que conseguimos, Berenice ainda chorava. Dito fechou a porta atrás de nós, e só então virei. Os corpos inatos dos meus pais estavam no meio da sala, as cabeças esmigalhadas, provavelmente por um martelo. Estremeci, e só então caí no choro, caindo sentada ao chão.
- Meu Deus! - gritei em voz alta - Te sirvo há tanto tempo, por que é que isso está acontecendo com a gente? O que foi que fizemos?
- Foi exatamente esse o erro de vocês - o rosto do motorista, que eu sabia se chamar Dakota, surgiu no vidro agora quebrado da porta dos fundos - Servir a Deus. Tenho observado sua irmãzinha há meses. Ela nunca sequer olhou para mim, porque sabia que eu não tinha o mesmo Deus que vocês. Foi fácil mentir que tinha me convertido e puxar um assunto qualquer, fazê-la pensar que o abuso foi culpa dela. Enquanto vocês estavam naquele culto, eu matava seus pais. Tudo isso não é mero capricho de alguém que desejou uma menina, não. Tudo isso é pra ele.
A risada ecoou pela casa, eu estremeci. O choro de Berenice ficou mais alto. Mas que raio estava acontecendo, o que é que eu não sabia?
- Ele é um adorador de Satã - Dito explicou, tão calmo que tive medo que fossem dois - Ele e Keiko. Os dois estão namorando há algum tempo, planejando coisas malignas. A missão de Keiko era desviar alguns dos jovens, ela não conseguiu.
- Por pouco tempo - Keiko surgiu bem atrás de mim, e eu gritei. Tentei correr, mas não tinha pra onde. Ela tinha uma arma na mão, uma que eu sabia ser uma 38, porque meu pai tinha treinamento militar. Todo meu corpo tremia. Nunca tive medo de morrer, sempre tive convicção de que estaria no céu se acontecesse algo. Mas pela primeira vez tive medo.
De repente, uma mão surgiu não sei de onde e tirou a arma das mãos de Keiko como num passe de mágica. As mãos eram de Dayo, que entrara com Miranda, sorrindo os dois.
- Demorei um pouco? - ele perguntou, como se estivesse ali para uma visita de fim de semana - Por favor, Benedito, pegue sua irmã gêmea e leve para o carro, agora.
Dito segurou Nice no colo, que ainda chorava, tremendo. Eu ainda chorava, mas eram só lágrimas agora. Miranda me abraçou, mantendo-me longe da bagunça toda. 
- Vou chamar a polícia - anunciou Dayo, pegando o telefone. Em seu momento de distração, Keiko tomou a arma de volta e apontou para a cabeça dele. Miranda gemeu.
- Como foi que souberam o que tava acontecendo aqui? - ela perguntou, desnorteada.
Dayo ainda sorria, como se fosse a mais amigável das conversas.
- Deus me deu uma visão enquanto eu almoçava. Vi vocês dois, e tudo o que aconteceu, inclusive aqui. E Papai me disse para salvar as crianças, para protegê-las, dar um lar a elas.
- Seu Deus vai proteger você de um tiro? - ela sorriu, maliciosamente, destravando a arma.
- Talvez - ele sorria - Se salvar, tudo estará bem. Se não salvar, vou estar com ele em minutos. Tenho certeza.
- Dayo - era a voz de Dakota agora, que já abrira a porta e estava em frente a namorada. - Sei que fiz atos abomináveis. Mas deixe que Keiko se salve. Ela é uma boa garota. Ore por ela, leva-a daqui, tire desse tormento, faça com que aceite a teu Deus de verdade, que renuncie todas essas coisas.
Dayo assentiu, com confiança. Inesperadamente, Keiko virou a arma na direção de Dakota, que arregalou os olhos.
- O que tá fazendo? - ele perguntou, assustando.
- Não vou ir com eles, Dake - ela falava com raiva - Não me obrigará a isso. Fiz o juramento que ia obedecer a ele a vida toda. Que ia ajudá-lo a governar o mundo, quando ele vencesse Deus.
Eu soltei um gritinho. Ver seus amigos falando dessa forma dói. É como se alguém tivesse enfiado uma adaga em suas costas, e você não pudesse tirar dali, pois sangraria mais. Mas se não tirar, não vai cicatrizar nunca. Então ela fica ali, doendo, machucando como o tormento eterno. É triste perder um amigo assim. É pior que perder para a morte.
- Adeus, Dake - eu fechei os olhos. 
O tiro ecoou dentro da casa, e eu soltei o choro num gemido. Abri os olhos, a procura do corpo de Dakota, mas o que vi foi ele olhando aturdido para o corpo de Keiko, que acabara de dar um tiro na própria cabeça.
- Dake - a bondade de Miranda sempre falava mais alto, seu coração bondoso acreditando no melhor das pessoas - Deus te aceitará de volta, se você se voltar pra ele. O Diabo não vence a Deus. Você pode vir, se quiser, pro lado bom, basta pedir perdão a Deus.
Ele gemeu um bocado, olhou para Dayo, que o olhava num misto de compaixão e esperança.
- Dayo, eu nunca entendi o por que de vocês amarem tanto todos esses jovens - ele falava sinceramente agora - E nem esse Deus. Se ele é tão bom, por que não acaba com a pobreza, com a fome? Ou não salva a todos, ao invés de dar a eles a condenação eterna? Nunca entendi nada disso, mas uma coisa entendo muito bem, Dayo. Entendo que o que vocês fizeram hoje por essas três crianças, eu não faria nem a minha mãe. E isso deve ter um significado. Não consigo amar a ninguém, e mesmo assim, sua esposa acaba de provar que me ama. E isso é confuso. Mas se esse amor que vocês sentem vem desse Deus que vocês confiam, eu O quero.
Dayo e Miranda sorriram. Eu olhei de um a outro, desacreditada. Não é possível que pudesse mesmo acreditar na bondade daquele filho da mãe que fizera tanta maldade pra minha família. Não é possível que fossem mesmo perdoá-lo.
Uma voz em meu ouvido soou como um trovão.
- O amor vem de mim, filha - era Ele, era Deus - O perdão também. Se eu o perdoei, quem é você para sentir raiva ou mágoa?
Um bálsamo de fogo surgiu no meu peito, e do meu coração surgiu um amor por aquele homem estranho. Não um amor carnal. Um amor pela alma dele.
Hoje fazem dez anos que tudo isso aconteceu. Dake se tornou meu marido, três anos depois. Deus curou o trauma dos meus irmãos, e também os deu amor. E Dayo e Miranda são tutores dos meus irmãos, desde que meus pais se foram. Keiko foi homenageada pela igreja da mesma forma que qualquer um de nós, e ninguém soube que ela era adoradora do outro lado. Preferimos que os outros lembrassem dela como aquela menina linda e meiga, que ajudava a todos e tinha um lindo dom do canto.
As coisas mudaram. Hoje eu ensino adolescentes que sofreram abuso a passarem por isso, e perdoarem seus agressores. Os gêmeos fazem um trabalho semelhante com crianças. E no mundo, as coisas podem demorar muito ainda pra se tornarem como a gente quer. Mas Deus está sempre pronto a nos dar amor, por todas as pessoas. E o perdão, quando necessitarmos dele.


Autoria de Fran Carvalho
Agradecimentos a Eliéser Carvalho, Yasmin Souza e outras pessoas que me ajudaram de alguma forma na criação do texto.

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